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quarta-feira, 3 de março de 2010

O destino da arte atado à crise do capital fictício

Tanto nos países centrais, quanto na periferia do capitalismo, a história da arte se consolidou em torno de práticas e noções análogas às das técnicas financeiras. Hoje o destino da arte está atado à crise do capital fictício. Não são poucos os artistas, inclusive jovens, que concebem trabalhos para o gozo do entesouramento. O artigo é de Luiz Renato Martins, professor do departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, o quarto texto da série "Marxismo e Século XXI", organizada pela Carta Maior, com curadoria do sociólogo Chico de Oliveira.

Luiz Renato Martins

A rotina da história da arte tem sido a de sancionar o confisco do trabalho vivo do artista. Nisso ela não difere do vampirismo patronal que suga a mais valia do trabalhador para transformá-la em coisa morta, monetizável. O sistema sempre operou com a idéia da arte como valor. O resultado desse alinhamento é que tanto nos países centrais, quanto na periferia do capitalismo, a história da arte se consolidou em torno de práticas e noções análogas às das técnicas financeiras. Hoje o destino da arte está atado à crise do capital fictício. Não são poucos os artistas, inclusive jovens, que concebem trabalhos para o gozo do entesouramento. O significado da arte para além dos efeitos de valor vem se mostrando cada vez mais efêmero, senão nulo. A arte "desmaterializou-se", apressaram-se a dizer alguns, num último esforço fetichista, anunciado décadas atrás. Exasperadas as contradições e circulando em leilões e feiras - como de resto os derivativos, os bens de capital e os legumes - a arte, com cara de esvaziamento de significados, e o capital fictício, com cara de hiper-inflação, já bailam algo semelhante a valsa no convés do Titanic.

Na era do mercado a arte como tudo o mais é bifronte: trabalho vivo e concreto para o artista; trabalho coisificado, valor acumulado, para o colecionador. Tal embate trava-se em vários fronts desde há muito e não foram poucos os artistas combativos, da Revolução Francesa em diante, que se associaram à resistência anticapitalista e às lutas revolucionárias.

Já no âmbito da história da arte, associada à gestão dos grandes acervos e que pauta as grandes mostras e a recepção geral, quase não houve disputa. A hegemonia do ponto de vista do colecionador foi sempre inconteste e a luta política quando houve deu-se abaixo. No alto, o sistema que rege a circulação da arte e dita o valor de face das obras operou sempre com a idéia da arte como valor. A rotina da história da arte é a de sancionar o confisco do trabalho vivo do artista e não difere do vampirismo patronal que suga, sabe-se, a mais valia do trabalhador para transformá-la em coisa morta monetizável. O resultado deste alinhamento dos historiadores e curadores com os proprietários é a noção corrente da obra de arte como valor, objeto especial e isolado das demais, vale dizer, em situação de rigor mortis.

Não é de surpreender que na era da hegemonia burguesa amor à arte e à moeda componham duas faces do mesmo. A arte, no prisma da coleção, não se distingue das demais fabricações e produções de valor. Exceto pelas nacionalizações revolucionárias na França e na Rússia, as grandes coleções de referência dos museus nacionais ou análogos privados provém de processos de acumulação primitiva de base militar ou de "privatarias" com teor predatório similar. Explica-se assim que nos países centrais como nos periféricos a história da arte tenha se consolidado em torno de práticas e noções análogas às das técnicas financeiras. Seus juízos partem de valores dados, sancionam posses de fato, e efetuam sabidamente operações de valorização do valor.

Daí nas metrópoles do sistema internacional das artes os grandes museus funcionarem de modo “autônomo”, como carreiras de Estado e com um corpo de especialistas, tal como ocorre nos bancos centrais e congêneres. Daí os fundamentos da doutrina da "forma" e da "visibilidade pura" - noções que valeram como "língua franca" no discurso mais que centenário sobre as artes plásticas- apresentarem muito em comum com as doutrinas econômicas monetaristas.

Neste quadro, a afirmação, mote de abertura deste seminário, de que "o século XX foi o século do marxismo", decerto é válida em muitos campos, mas não o é para o sistema de circulação da arte. Aqui, como no mundo financeiro, a influência do marxismo foi nula, salvo exceções.

Em suma, as práticas de história e gestão da arte resumem-se, fora bem poucas exceções, a atos de valorização do valor. Sinal deste processo é a mitológica constelação de autores. Explicar a arte a partir de tais índices é o mesmo que descrever a economia, como faz o jornalismo econômico corrente, a partir das blue-chips e do vaivém das bolsas.

Troquemos a descrição de uma situação de fato e de força por uma história crítica. Um momento de inflexão decisiva foi a aniquilação da Comuna pelas tropas carniceiras da burguesia, que se refugiara em Versalhes, e a perseguição acirrada aos artistas que dela participaram. A ascensão do formalismo moderno, o surgimento do “opticalismo” impressionista vêm daí. Outro sintoma concreto do processo de apropriação e formalização da produção artística para fins de entesouramento foi a remoção, após o massacre de 1871, de todas as questões e teses de Baudelaire (1821-1867). Morto quatro anos antes (no ano da publicação d´O Capital), Baudelaire fora o primeiro crítico a pensar o processo histórico da arte moderna e a associá-lo com a radicalização do teor anticapitalista da luta de classes. Em síntese, para o crítico, a arte moderna - nascida da Revolução Francesa em seu período radical, de 1793 a 1794, com o Marat Assassinado (1793), de David (1748-1825) - deveria ser épica e narrar a história atual. "Façamos (...) a pintura da Revolução", afirmaria mais tarde em anotação ("Notes diverses sur l´art philosophique", ca. 1860, publ. 1925), a meio caminho entre a revolução de 1848, de que participou, e a da Comuna que não chegou a ver.

No outro pólo, o partido formalista, que se tornou hegemônico após 1871, concebeu e difundiu a fórmula reificada da arte moderna como coisa especializada, prática atemática e dissociada dos conflitos históricos. A fórmula fez-se o "padrão-ouro" da arte e imperou até algumas décadas atrás.

Qual a situação da arte hoje? Atada à crise atual do capital fictício. Após a afasia do discurso formalista clássico nos países centrais (seu último pico se deu nos anos 1950), sucedeu-se um reajuste. O padrão-ouro teve que ser substituído por outro mais flexível e eclético; as estratégias de valorização se diversificaram e se globalizaram, mas a estrutura do sistema e o comando da cena seguem os mesmos. Em miúdos, a crise da "grande narrativa linear da arte moderna", que culminava na noção de “arte abstrata” e “autônoma”, deu lugar a hibridizações ecléticas do formalismo. Gerou-se um novo panteão de autores com nomes periféricos ao modo de uma bolsa multicultural e pós-moderna. Nada muito distinto, enfim, da disseminação de praças financeiras globalizadas e da multidão de derivativos e fundos que se duplicam e espelham em regime on-line.

Neste processo, a arte contemporânea recalcou as lutas do passado e, como no tempo das Academias reais, fez-se de indiferente à guerra das classes. Assim ajustou-se ao ambiente dos negócios e passou majoritariamente a se querer auto-sustentável; como as finanças, ganhou espaços. Hoje, já não há banco ou operação de negócio na esfera urbana sem historiadores da arte e curadores associados. Valorização do valor é o negócio das finanças e dos incorporadores imobiliários, mas os profissionais da arte têm o que ensinar a respeito. Neste quadro, não são poucos os artistas, inclusive jovens, que pervertem, em práticas de narcisismo e auto-leniência, a auto-ironia crítica de Duchamp (1887-1968); realizam a priori a metamorfose e concebem trabalhos para o gozo do entesouramento.

Em contrapartida, o significado da arte para além dos efeitos de valor vem se mostrando cada vez mais efêmero, senão nulo. A arte "desmaterializou-se", apressaram-se a dizer alguns, num último esforço fetichista, anunciado décadas atrás. O processo corrosivo seguiu. Agora, exasperadas as contradições e circulando em leilões e feiras - como, de resto, os derivativos, os bens de capital e os legumes -, a arte, com cara de esvaziamento de significados, e o capital fictício, com cara de hiper-inflação, já bailam algo feito a valsa no convés do Titanic... Mais: a 28º Bienal de Arte de São Paulo, no ano passado, fantasmagórica e esvaziada como a Detroit atual, ameaça ser sucedida por um clone. Assim corre o boato (‘Mesmo com crise, SP Arte chega maior à 5a. edição’, Folha de S. Paulo, 13.05.09, E-13) de que a 29º Bienal, sem créditos na veia para poder encarnar, passará por uma morganática (enlace real/plebeu) aliança inter-presidencial com a jovem, operosa e bazareira SP Arte (deu na “Ilustrada”, mas a Folha, para essa e outras, deveria abrir o caderno “Sem-Dinheiro”). Quem crê em ressurreição? O rumor da clonagem para salvar a Bienal diz muito sobre as metamorfoses da arte e sobre quem ensina quem no mercado.

Falavam na primeira classe do Titanic que o marxismo tinha morrido. Quem ficou pra contar a história?

(*)Luiz Renato Martins é professor do departamento de Artes Plásticas da ECA-USP.

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