Contribuição ao entendimento do método da economia política, segundo Marx
Claus Magno Germer
Introdução
O método de Marx constitui um tema de relevância especial para o desenvolvimento da teoria marxista. Não me refiro ao caráter genérico da relevância do método como momento essencial de toda pesquisa científica, que é óbvio, mas ao caráter específico da sua relevância no marxismo atualmente, devido às consequências, sobre a pesquisa marxista, da acentuada diferença da base filosófica do marxismo em relação à base filosófica geral da ciência burguesa . A base filosófica do marxismo é o materialismo, entendido como corrente da filosofia, e o seu método básico é a lógica dialética. O materialismo filosófico distingue-se do idealismo, que constitui a base filosófica da ciência burguesa, e a lógica dialética distingue-se, nos mesmos termos, da lógica formal . Dado o domínio absoluto do idealismo e da lógica formal no establishment científico burguês, e não só nele, pois se projeta nos modos de pensar do senso comum em geral, e dada a inferioridade do materialismo e da representação marxista nestes meios, compreende-se não só a dificuldade de apreensão das particularidades da filosofia e do método marxistas, mas também a possibilidade da sua apreensão distorcida pela influência dominante do pensamento burguês .
A deficiente apreensão do método teórico de Marx, reconhecida pelos próprios autores marxistas, reflete-se, em primeiro lugar, em deficiências metodológicas na sua produção teórica, e adicionalmente na pequena freqüência de textos que abordam os problemas do método . Na literatura econômica brasileira, em que a produção de base marxista comparece modestamente, esta insuficiência é obviamente mais acentuada . Uma das causas da insuficiência apontada é, evidentemente, o insuficiente aprofundamento da discussão do tema, em confronto com a sua complexidade e com a variedade de aspectos relevantes e ângulos de análise que comporta. Dada esta complexidade, um artigo sobre o tema deve limitar-se ou a um levantamento sumário dos seus aspectos mais relevantes, que seria necessariamente superficial, ou a uma abordagem algo mais detalhada de um aspecto ou ângulo de análise. O presente artigo é do segundo tipo, tendo como objetivo principal a discussão do significado e da relevância dos conceitos de ‘concreto’ e ‘abstrato’ no método de Marx, aplicados à economia política.
Embora o método de Marx tenha constituído tema de estudos anteriores, impostos pelas próprias necessidades da atividade de pesquisa, o presente artigo constitui a primeira tentativa de elaboração própria sobre o tema. Por esta razão - mas não só por ela, mas também pela limitação da forma artigo -, a cobertura do tema não é completa, não tendo sido possível, por exemplo, explorar em toda a extensão os textos citados. Também ficaram sem aprofundar - ou foram apenas mencionados - diversos aspectos importantes do método de Marx e suas implicações, como por exemplo a dialética e o sentido do polêmico caráter lógico-histórico, entre outros. Também não pude incluir referências a passagens metodológicas importantes presentes em outras obras de Marx, com destaque para o próprio O Capital e Teorias da Mais-Valia, bem como obras essenciais de Engels e de outros autores marxistas. Por prudência e por método, o presente artigo explora basicamente os textos metodológicos iniciais de Marx (e Engels). Por outro lado, o enfoque do presente texto apresenta uma das unilateralidades comumente presentes em textos que abordam problemas de método. É que, segundo se lê, eles são geralmente escritos ou por filósofos com pouca experiência em pesquisa, ou por pesquisadores com pouca formação filosófica, sendo este último o caso do presente texto. Em ambos os tipos de textos deve-se esperar que a deficiência em um aspecto seja compensada por um mínimo de suficiência no outro.
Uma das causas da complexidade geralmente atribuída á abordagem do método de Marx, além da complexidade intrínseca ao tema, é o fato de Marx não ter redigido um texto em que explicitasse de modo completo e inequívoco o seu método. Dizer isto implica que o seu texto, que traz este título - MEP -, é insuficiente como exposição do seu método, o que é um fato. É possível, porém, que uma causa das dificuldades alegadas consista em uma controvérsia entre os estudiosos de Marx, que se refere à medida em que se pode admitir uma continuidade ou ruptura na evolução do pensamento de Marx, a partir dos seus primeiros escritos do início dos anos 1840. Uma polêmica sobre isto foi desencadeada com a publicação, nos anos 1960, dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 (MEF). Todavia, Marx redigiu diversos textos de natureza eminentemente filosófica e metodológica no início da sua atividade, como se indicará no presente artigo -, não havendo razão para particularizar os MEF -, e a sua sequência parece constituir uma exposição bastante satisfatória e clara dos princípios filosóficos e metodológicos sobre cuja base erigiu a sua obra teórica nos anos seguintes. A análise desta sequência de textos fornece argumentos significativos no sentido da existência de uma continuidade essencial da obra de Marx com base nos princípios metodológicos a cuja definição se dedicou no início da sua carreira. Mais do que isto, estes textos, tomados em conjuntos, fornecem uma exposição bastante completa dos aspectos essenciais do seu método. Uma afirmação de Marx, presente no prefácio da Contribuição à crítica da economia política, publicada em 1859, é significativa como confirmação desta continuidade. Nesta passagem Marx relata o resultado dos seus estudos metodológicos, desde a crítica da filosofia do direito de Hegel até os textos produzidos em Bruxelas - os importantes Teses sobre Feuerbach e A ideologia alemã -, dizendo que este resultado geral, “uma vez obtido, serviu como fio condutor dos meus estudos” (CEP, p. 135/100). É significativo o fato de Marx fazer tal afirmação em 1859, ou seja, quase 15 anos após os estudos aos quais se refere, e quando já havia formulado o primeiro esboço geral do O Capital, representado pelos Grundrisse.
A sequência cronológica dos textos mostra que os escritos metodológicos mais importantes de Marx, nos anos 40, que são a IA, as TF, a SF e MF, nesta ordem, foram escritos após dois textos iniciais em que Marx se definiu sobre dois aspectos fundamentais do seu método. Estes textos são a Contribuíção à crítica da filosofia do direito de Hegel e os Manuscritos econômico-filosóficos. No primeiro texto Marx situou-se claramente no terreno filosófico do materialismo, com base na crítica do idealismo extremado de Hegel . Nos MEF Marx fez a primeira incursão na crítica da Economia Política, tal como expressa principalmente nas obras de Smith e Ricardo. E assinala que fez a crítica com base nos termos e conceitos da própria economia política, mas adotando como eixo da análise a contradição entre propriedade privada e trabalho. Marx conclui que a economia política, apesar de erigir o trabalho em fonte do valor, em sua análise toma inteiramente o partido da propriedade privada. Esclarece também que o trabalho focalizado pela economia clássica não é o trabalho em geral, mas o trabalho alienado, isto é, o trabalho submetido ao capital. O procedimento de Marx foi de refazer a análise, utilizando os próprios conceitos da economia clássica, mas partindo do ponto de vista do trabalho, com o que coloca em evidência a contradição de interesses de classes localizada na base do capitalismo.
Nos textos seguintes Marx aprofundou a sua crítica ao idealismo e aperfeiçoou as suas concepções sobre o materialismo, inclusive graças a uma crítica rigorosa ao materialismo naturalista de Feuerbach, que foi o autor que lhe abriu o horizonte da crítica ao idealismo hegeliano. Os capítulos sobre o método, na SF e na MF, constituem esclarecimentos essenciais sobre as origens dos equívocos metodológicos do idealismo - especialmente sobre a aplicação da abstração como método - e sobre a forma de conceber o conhecimento da realidade de um ponto de vista materialista. Mas é na IA, o texto mais importante desta fase, do ponto de vista metodológico, que Marx e Engels procuram traçar as linhas gerais da sua própria concepção sobre o método geral de análise da evolução social, que se encontra no primeiro capítulo desta obra. Neste sentido é não apenas uma crítica da teoria do conhecimento idealista, mas constitui também a proposição dos pressupostos e implicações do enfoque materialista e dialético por eles postulado. Mas é somente 10 anos mais tarde, em 1857, que Marx elabora o importante MEP. Neste texto, embora não apareçam inovações conceituais, Marx faz uma sistematização do processo de elaboração teórica na economia, através da aplicação dos princípios da concepção filosófica materialista geral, desenvolvidos nos textos anteriores, acima mencionados.
O interesse, no presente texto, reside na exposição do método de Marx aplicado à economia. Embora este método constitua uma aplicação de princípios gerais a um campo particular de conhecimento, ao qual Marx chegou exatamente nesta ordem, isto é, dos princípios gerais à sua aplicação particular, parece-nos que esta ordem não é a mais apropriada à exposição do seu resultado. Neste texto se fará o percurso inverso, do método aplicado à economia aos princípios filosóficos gerais, de modo que estes serão expostos como justificação e fundamentação do método da economia.
O método de pesquisa adequado à economia ou a dialética abstrato/concreto
No MEP Marx formula um enunciado que constitui a síntese de todo o método proposto, como concepção materialista e dialética da realidade. Segundo esta afirmação, o processo do conhecimento, na economia, realiza-se em duas fases. A primeira fase começa com a população
e vai deste “concreto como representação a abstratos cada vez mais tênues, até chegar às determinações mais simples. Daí seria necessário retomar a viagem em sentido inverso [que é a segunda fase - CMG], até (...) chega[r] novamente à população, mas desta vez não como uma representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações” (MEP, p. 122/36, grifos acrescentados).
Em seguida acrescenta:
“O último [isto é, a viagem das abstrações ao concreto - CMG] é claramente o método cientificamente correto. O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, portanto unidade do diverso. Por isso ele aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora constitua o ponto de partida real e por isso também o ponto de partida da intuição e da representação”.
Os termos abstrato e concreto, integrantes da terminologia própria da filosofia clássica alemã até Hegel, possuem significados diferentes em Hegel e em Marx, que é necessário esclarecer. Em uma primeira aproximação o abstrato designa um conceito, produto do chamado método da abstração, que consiste em extrair ou remover da realidade perceptível - como representação mental - uma parte ou aspecto específico (Inwood, p. 41). Este é o sentido em que Marx utiliza o termo. O abstrato é portanto um produto do pensamento, e consiste na representação mental de um elemento da realidade empírica, tal como esta se reflete de modo direto no pensamento. Neste sentido o abstrato constitui uma fase elementar do conhecimento mas não é o próprio conhecimento, pois este não se reduz à representação de um ou diversos aspectos isolados da realidade. O conhecimento consiste no concreto, isto é, na apreensão de um objeto de estudo como um conjunto de elementos interrelacionados dinamicamente (isto é, em movimento contínuo de transformação) de um modo definido, ou seja, consiste na interconexão e na lei de movimento do objeto .
No início do texto mencionado, Marx afirma que o método correto da economia, em uma primeira aproximação, parece consistir em começar do ‘real e concreto’, como a população de um país e sua distribuição quantitativa em classes, ou na cidade e no campo, ou nos diferentes ramos de produção, etc. Mas observa que a população, assim entendida, é uma abstração, pois ela constitui um conceito vazio na medida que omitimos as classes que a compõem e os elementos sobre os quais estas se apóiam, como o trabalho assalariado, o capital, etc. (MEP, p. 122/35-6).
A população aparece duas vezes no argumento, e ambas as vezes com a menção às classes que a integram, mas na primeira vez estas aparecem de um modo que Marx considera inadequado, o que não ocorre no segundo caso, o que parece contraditório. O motivo é que na primeira menção as classes aparecem apenas como subdivisões numéricas da população, ao lado das subdivisões em cidade e campo, em ramos de produção, etc., ao passo que na segunda as classes são elementos constituintes da população, referidas aos seus fundamentos no trabalho, no capital, entre outros, expressando portanto relações sociais. Mas, apesar de a população ser, no primeiro sentido, o pressuposto real, ela é “uma abstração”, pois ela constitui a representação mental parcial de um todo complexo . Assim, a população como ponto de partida “seria uma representação caótica do todo” (Ibidem, p. 122/36).
O conceito de concreto, na exposição de Marx, aparece de um modo que requer maior detalhamento. Para isto deve-se partir de duas distinções essenciais. A primeira consiste na distinção entre o concreto entendido como ponto de partida do processo de conhecimento, que poderíamos denominar concreto real, e depois como seu resultado, o concreto pensado. Somente no segundo sentido é que se aplica apropriadamente o conceito de concreto, no sentido específico de que a realidade está compreendida ou interpretada pelo pensamento como totalidade orgânica. A segunda distinção decorre da concepção filosófica materialista de Marx e refere-se ao concreto como ponto de partida. Este deve ser entendido de dupla forma: por um lado, representando a realidade material, que é o pressuposto do pensamento e que existe antes dele e independentemente dele. Este é o sentido adequado da expressão concreto real, porque designa o mundo material realmente existente e constitui o ponto de partida real como objeto de todo pensamento. No entanto, o ponto de partida do processo de elaboração do conhecimento , indicado por Marx, é o concreto como representação mental, isto é, como expressão da percepção imediata da realidade através dos sentidos. Parece adequada, neste sentido, a designação de concreto sensorial a esta representação (Diccionário, 1984, p. 6; Inwood, p. 41). Neste sentido o concreto sensorial é uma representação caótica do todo.
Há uma certa imprecisão no uso do conceito de concreto na literatura. O significado do concreto em Marx é de representar o real inteligível, o que implica uma totalidade como síntese de muitos elementos interligados, ou muitas determinações, como na citação acima. Neste caso Marx o utiliza como categoria do pensamento e não da realidade empírica . Hegel expresssa-se de modo idêntico, pelo menos em uma passagem (“... a idéia é essencialmente concreta, visto ser essa a unidade de distintas determinações”, Hegel, p. 103). A identificação do termo latino concretus, que lhe dá origem, torna mais claro o seu significado: ‘formado ou crescido por agregação’ (Inwood, p. 41). Marx parece coincidir com Hegel, no sentido de que para ambos o concreto é um categoria do pensamento. Mas há uma diferença essencial: para Hegel o real situa-se no plano das idéias, sendo o empírico apenas aparência ou fenômeno, ao passo que para Marx o real é o empírico, o mundo material, e as idéias o seu reflexo no pensamento. Assim, o concreto como categoria do pensamento constitui apenas a forma - a única possível - pela qual o pensamento reproduz o real como ele é, uma totalidade de muitos elementos interligados. Sendo assim, é legítimo utilizar as expressões concreto real e concreto pensado, embora Marx não as tenha utilizado , uma vez que a totalidade real, como integração real dos seus componentes materiais, é o empírico, ao passo que o concreto como pensamento é apenas a sua reprodução do único modo possível ao ser humano . Neste sentido a expressão concreto sensorial parece menos legítica, na medida que o que é captado diretamente pelos sentidos não é o real como totalidade, mas como cáos. Talvez a expressão mais adequada fosse percepção sensorial ou simplemente o sensorial. Mas mantém-se o concreto sensorial por ser a percepção do concreto na sua realidade.
O concreto pensado, em oposição ao anterior é, como o nome diz, o concreto como produto ou resultado do pensamento através de um processo de síntese, de totalização, em que as diversas partes significativas da realidade são combinadas em uma totalidade, na qual se articulam de modo definido, não estaticamente mas dinamicamente ou como processo. Quais são as partes da realidade cuja síntese constitui o concreto pensado? São as partes ‘pensadas’ do concreto real, isto é, elaboradas pelo pensamento a partir do concreto sensorial, na forma de conceitos ou abstrações simples. São portanto os componentes elementares do concreto sensorial, isolados e extraídos do todo caótico inicial e reduzidos à sua expressão pura. As abstrações representam, portanto, os componentes significativos do real investigado. O mero agrupamento destes componentes em um conjunto, todavia, não constitui uma reprodução coerente e articulada do todo, mas apenas uma coleção de peças isoladas. Como tal coleção, este conjunto não constitui conhecimento do concreto real, pois não o apresenta como um todo internamente articulado e não identifica as leis do seu movimento. Na economia este trabalho de identificação das abstrações simples, ou das peças elementares do sistema econômico, foi inicialmente realizado, segundo Marx, pelos economistas do século 17, que isolaram “algumas relações abstratas gerais, como divisão do trabalho, dinheiro, valor, preços, etc” (MEP, p. 122/36).
Estas abstrações são a matéria prima do conhecimento verdadeiro, representado pelo concreto pensado, cuja elaboração constitui a segunda fase, que Marx concebe como o método cientificamente correto. Assim, o processo de elaboração do conhecimento pelo pensamento, consiste, em primeiro lugar, na elaboração das abstrações, ou conceitos, a partir do concreto sensorial - que é a primeira fase -, e em segundo lugar na reconstrução do real, pelo pensamento, a partir das abstrações elementares - a segunda fase, do abstrato novamente para o concreto, mas agora para o concreto pensado. Esquematicamente o processo de elaboração do conhecimento pode ser apresentado da seguinte forma:
concreto sensorial coleção de abstrações simples concreto pensado
processo de elaboração do conhecimento
Após a menção à elaboração das abstrações mais simples pelos economistas do séc. 17, diz Marx que, “assim que estes momentos isolados haviam sido mais ou menos fixados e abstraídos, começaram os sistemas econômicos [isto é, os esboços do concreto pensado econômico - CMG], que se elevavam do simples, como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, o comércio entre as nações e o mercado mundial” (MEP, p. 122/36). Smith é um destes edificadores de sistemas teóricos, mas ainda se debate em contradições entre as representações do concreto sensorial e do concreto pensado: “A economia política, em A. Smith, havia se desenvolvido até uma determinada totalidade, havia delimitado, em certo sentido, o terreno que abarca. Por um lado ele segue as conexões internas das categorias econômicas - ou a estrutura oculta do sistema econômico burguês [o concreto pensado - CMG]. Por outro lado expõe a interconexão tal como é perceptível nas aparências da concorrência e como se apresenta portanto ao observador leigo [o concreto sensorial - CMG] (...)” (TMV2, p. 816).
O conceito de prática como base do pensamento
No entanto, o processo de elaboração do conhecimento pelo pensamento constitui apenas a etapa mental do processo de conhecimento, partindo do concreto sensorial. Mas como se forma o concreto sensorial? Segundo a concepção materialista, ele constitui o reflexo, mediado pelos sentidos, do mundo material na mente humana. Mas este reflexo não é entendido por Marx como uma relação sujeito-objeto de tipo individual e contemplativo, nem é uma relação linear contínua, que se inicia com a sensação e termina com o conhecimento. É um processo de repetição contínua, que integra o processo contínuo de intercâmbio do ser humano com a natureza através do trabalho, que constitui a produção material). Ao produzir , isto é, ao transformar os materiais naturais, o ser humano interpreta continuamente os efeitos da sua ação sobre a natureza e, com isso, interpreta a própria natureza, sua estrutura e dinâmica, e testa contínuamente a sua interpretação, ao observar os efeitos positivos e negativos da sua ação baseada na interpretação anterior . Com base nesta observação, reformula e refina as suas interpretações, que é o que constitui o processo de elaboração do conhecimento. Neste sentido é que se diz, na filosofia materialista, que o critério da verdade é a prática . Pode-se dizer, sintetizando, que o processo do conhecimento consiste em duas etapas, sendo a primeira a ação material ou física do ser humano sobre a realidade material - a natureza, por um lado, e a sociedade, por outro - através do trabalho, e a segunda a sua ação intelectual sobre a mesma, que é o processo de elaboração mental do conhecimento com base no concreto sensorial. No conjunto, estas duas fases compõem a prática. Consequentemente, parece fundamentado afirmar que o processo do conhecimento coincide com o conceito de prática . Sendo assim, o seguinte esquema parece representar adequadamente o ponto de vista de Marx sobre a natureza da prática e do processo do conhecimento como um todo:
A seta na parte superior do esquema, do concreto pensado ao concreto real, ressalta o fato de que o conhecimento, como resultado do processo, continuamente reage sobre a prática material, realimentando-a e sendo por ela novamente aperfeiçoado. Ao mesmo tempo pretende-se demonstrar o fundamento da noção marxista de que a teoria e a prática são duas atividades que não podem existir isoladamente uma da outra - não se faz atividade prática sem conhecimento do pretendido, nem se elabora conhecimento sem realizar atividade prática -, embora possam ser separadas como funções de indivíduos diferentes, como se verá.
Por outro lado, o ser humano, desde o início, organiza-se em grupos e produz em grupo, com base em formas progressivas de divisão do trabalho, ou seja, em formas sociais progressivas. Consequentemente, produz em sociedade, de modo que a produção deve ser conceituada não como produção individual mas como produção social, e sua base não é o trabalho individual mas o trabalho combinado socialmente em uma estrutura de divisão do trabalho. Isto tem duas implicações. Por um lado, todo produto individual é apenas uma parte do produto total, não apenas do ponto de vista quantitativo, mas principalmente qualitativo, pois cada produtor fornece um produto diferente. Isto implica que nenhum indivíduo pode sobreviver do produto físico do seu próprio trabalho, do qual obtém apenas uma parte (que é tanto menor quanto mais desenvolvida está a divisão do trabalho) dos meios de produção e consumo essenciais à sua sobrevivência. Por outro lado, o trabalho e o produto do trabalho devem ser distribuídos entre os membros do grupo social, o que pressupõe um processo contínuo de interação entre estes, condicionado pela estrutura do processo social de produção. Esta estrutura de interações constitui o que Marx denominou as relações sociais de produção e distribuição, que constituem a estrutura econômica da sociedade e o objeto da economia como ciência (CEP, p. 135/100). Isto significa que o concreto real, que constitui a base material do processo de conhecimento específico representado pela economia, é a rede de relações estabelecidas pelos indivíduos, em determinada sociedade, na produção e na distribuição dos meios necessários à sua sobrevivência . Assim sendo, o conceito de prática ou de processo do conhecimento engloba dois conjuntos de relações, as relações do ser humano com a natureza e as suas relações recíprocas na sociedade . A teoria sobre a economia, resultante do processo de elaboração do conhecimento nesta área, constitui o concreto pensado específico a ela, uma totalidade de múltiplos elementos interrelacionados, e estes elementos são as abstrações ou conceitos que expressam as relações sociais de produção e distribuição. Por este motivo específico é que se deve dizer que a economia, para Marx, é uma teoria social.
A divisão do processo do conhecimento em duas etapas distintas, a material e a mental, tem uma importante consequência. No início, a ação sobre a natureza e a sua interpretação - isto é, as práticas material e intelectual - são realizadas pelos mesmos indivíduos. Mas, à medida que a divisão do trabalho evolui, na produção e na distribuição, institui-se também, aos poucos, a divisão entre os trabalhos material e intelectual. Isto significa que a produção material e a produção intelectual passam a ser realizadas, gradualmente, por indivíduos diferentes, com implicações que serão indicadas adiante.
Finalmente, é necessário deter-se na relação existente entre o concreto pensado e a realidade empírica. Esta relação vem à mente quando se reflete sobre se o concreto pensado coincide com a realidade empírica, o que parece ser o caso, pois se pretende que ele constitua a reprodução do real como uma totalidade coerente, mas ao mesmo tempo parece não ser o caso, pois ele constitui apenas uma categoria mental. O assunto não pode ser aprofundado neste momento, pois requer exploração mais cuidadosa, mas algumas observações são oportunas. Em primeiro lugar, admitindo que o procedimento de elaboração do concreto pelo pensamento tenha sido tecnicamente correto, deve-se concluir que o concreto assim elaborado representa efetivamente a realidade a que se refere. Mas como esta categoria se compara com a realidade efetiva, inicialmente mencionada, e caracterizada como caótica? Um pouco de reflexão indica que a realidade efetiva, como categoria do mundo realmente existente, não é caótica. Caótica é a representação da realidade tal como apreendida diretamente pelos sentidos, portanto como categoria sensorial humana ainda não elaborada pelo pensamento. A apreensão da realidade como totalidade coerente, que ela é, requer que a representação direta caótica seja convertida pelo pensamento em uma totalidade igualmente coerente. Mas este resultado do processo, o concreto pensado, é um produto do pensamento, inteiramente construído com material abstrato, que são as abstrações ou conceitos teóricos . O concreto pensado, portanto, é uma categoria do pensamento, não é uma categoria da realidade. Como tal, não pode encontrar correspondência direta na realidade empírica. Uma ilustração econômica talvez torne mais claro o problema. Tomemos as categorias denominadas valor, preços, força de trabalho, taxa média de lucro, etc. Elas são conceitos ou abstrações que integram o capitalismo como concreto pensado, mas não existem na forma de abstrações em nenhuma economia capitalista. O que existe é um certo tipo de expressão dos valores em sistemas de preços diversificados segundo a época e o país; a força de trabalho como estruturas diferenciadas das massas de trabalhadores também localizadas no tempo e no espaço; a taxa média de lucro como estruturas igualmente diferenciadas de taxas de lucros, etc. O próprio capitalismo, entendido como concreto pensado, que é o modo de produção, não existe como tal no mundo real, mas apenas em formas históricas objetivas, que Marx denominou formações econômico-sociais.
O produto teórico da economia política, portanto, é uma representação mental da estrutura econômica da sociedade. Como é que esta representação mental, no caso do capitalismo, em que, por representar a lógica interna do capitalismo em geral, não representa nenhuma economia capitalista particular - como por exemplo a norte-americana, ou a japonesa, ou a brasileira -, se relaciona a estas suas formas empíricas de existência? A resposta é que o concreto pensado pode ser elaborado em diferentes ‘graus de concreção’ ou ‘graus de abstração’ . Assim, o modo de produção constitui um concreto pensado, abstraídas as características que distinguem as diferentes economias capitalistas nacionais umas das outras. Um maior grau de concreção ou menor grau de abstração seria suspender a abstração das características nacionais, ou, ao inverso, incorporar, ao concreto representado no conceito geral de modo de produção as características específicas de um país. Marx afirmou que tão fácil quanto é perceber o vínculo do particular ao geral, ou do existente ao abstrato, é difícil senão impossível fazer o caminho inverso. A ilustração é o conceito fruta, que Marx utiliza para demonstrar o contraste entre os procedimentos materialista e idealista, como se exporá adiante. A observação de qualquer fruta particular, como por exemplo uma maçã, permite ao observador imediatamente dizer tratar-se de uma fruta, mas à pergunta “apresente-me ‘a’ fruta”, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, pois não há qualquer objeto particular que seja ‘a’ fruta. Mas o sujeito teria resposta se lhe fosse pedida uma fruta com determinadas características que lhe permitissem identificar a fruta particular desejada. Isto significa que a identificação do empírico que corresponde a um abstrato determinado não pode ser direta, mas requer o acréscimo de elementos concretos adicionais .
A síntese disto parece ser que o concreto pensado é a representação lógica do real, portanto não é o próprio real. Esta representação lógica do real é que Marx denominou a essência do real em oposição à sua aparência. Portanto o produto da atividade intelectual é a representação da essência, ou das conexões internas da realidade - o concreto pensado -, que não é perceptível diretamente pelos sentidos, mas deve ser elaborado pela reflexão. Mas a aparência, na concepção de Marx, ao contrário de Hegel, não constitui a manifestação fenomênica, portanto aleatória e passageira, de essências residentes na idéia absoluta, mas constitui a forma de existência histórica, diversificada no tempo e no espaço, do mundo material tal como é percebida pelos sentidos.
A oposição idealismo/materialismo
O exposto até aqui fornece uma base adequada para a exposição do ponto de vista do idealismo filosófico e da crítica que lhe fez Marx, principalmente na sua expressão em Hegel. O exposto até aqui, ao retratar a dialética abstrato/concreto, tal como concebida por Marx, ao mesmo tempo forneceu uma síntese do caráter materialista da sua teoria do conhecimento. Esta última pode ser sumariamente resumida em uma fórmula muito comum nas exposições sobre o materialismo filosófico: as idéias, ou o conhecimento, constituem o reflexo do mundo material na mente humana - não o reflexo como contemplação, mas como prática sensorial -, implicando que a realidade material existe antes e independentemente da consciência. O idealismo filosófico, que alcançou seu máximo desenvolvimento na filosofia de Hegel, postula, ao contrário, que as idéias possuem precedência sobre a realidade material . É fácil reconhecer no idealismo filosófico uma projeção das idéias religiosas, que postulam uma divindade que cria o mundo e o ser humano segundo um projeto determinado, cuja realização constitui o pano de fundo da evolução da natureza e do ser humano . O desenvolvimento do conhecimento é concebido, assim, como um processo de progressiva explicitação do plano divino - ou da Idéia Absoluta, segundo Hegel - na mente humana, na mesma medida que a evolução histórica constitui a manifestação progressiva do espírito absoluto, bifurcando-se no plano objetivo como antítese do espírito, e retornando como síntese, ou como concreto realizado, ao plano das idéias.
Assim, o idealismo filosófico interpreta os conceitos ou abstrações de modo essencialmente oposto ao da filosofia materialista, e nisto reside a diferença fundamental entre estas duas concepçõers filosóficas. A diferença específica consiste na origem dos conceitos ou abstrações simples que constituem a matéria prima do concreto pensado. O idealismo filosófico atribui tais abstrações, sem nenhuma demonstração convincente, a uma origem sobrenatural. Isto lhe permite interpretar o mundo, na versão hegeliana, como uma gradual realização da Idéia no plano material. Neste caso as abstrações são conceituadas como categorias lógicas, que constituem, no entanto, a essência das categorias da realidade. Segundo Hegel, seguindo a tradição idealista que vem de Platão, as abstrações não representam os objetos reais em si, mas a sua essência ideal, da qual os diferentes objetos de uma mesma família são apenas variações fenomênicas. Desde Platão esta noção permitiu postular a estabilidade essencial da realidade - ou seja, a sua natureza eterna e imutável - em face da variedade e diversidade da realidade perceptível ou aparente, uma vez que os fenômenos reais, na sua variabilidade, são concebidos como múltiplas manifestações das mesmas essências imutáveis. Segundo Hegel, é o conjunto destas essências que forma o concreto, que é uma categoria do espírito. Deste modo, a realidade material constitui, para Hegel, uma coleção caótica de ‘encarnações’ das essências abstratas, que adquirem sentido apenas quando reduzidas às suas essências residentes no Espírito, que constitui a totalidade internamente articulada e por isto o concreto. Diferentemente de Marx, portanto, para Hegel o mundo material é apenas uma mediação no processo evolutivo da Idéia.
Segundo Marx, o raciocínio idealista inverte a relação entre os objetos reais e suas representações como idéias ou abstrações, resultando em que o conceito de abstração define-se de modos diferentes nas duas filosofias. Marx fez a crítica do conceito idealista, por um lado em sua expressão geral, em um capítulo da SF (cap. 5, seção 2. O segredo da construção especulativa); por outro lado, na sua aplicação à economia, em um capítulo da MF (cap. 2. A metafísica da economia política; seção 1. O método). Em síntese, o método idealista geral consiste em conceber os objetos reais como meras manifestações passageiras de essências ‘imateriais e abstratas’, ao passo que o método materialista consiste em conceber as abstrações como resultado da elaboração intelectual, com base na prática material, de conceitos que constituem generalizações de um caráter comum a diversos objetos reais. Marx exemplifica com o conceito de ‘fruta’. Em sentido materialista o conceito fruta é a generalização ou abstração de um caráter comum a diversos objetos reais como maçã, laranja, figo, etc. ou abstraídas as particularidades que caracterizam cada uma delas. Neste sentido, as frutas são os fenômenos da realidade material, ao passo que o conceito é uma abstração que resulta da reflexão baseada na prática, sendo portanto um produto do intelecto. Assim, a fruta é o conceito elaborado pelo intelecto a partir dos objetos reais, que são as frutas realmente existentes (SF, p. 60). No sentido idealista, em contraste, a abstração constitui a categoria real, na forma de uma essência imaterial, residente no mundo das idéias, que se manifesta em diversos objetos reais diferenciados, que são apenas diferentes expressões, ou aparências, da mesma essência ‘imaterial e abstrata’. No exemplo de Marx, no sentido idealista o conceito fruta é a categoria real, ou essência, da qual as diferentes frutas são apenas encarnações imperfeitas e passageiras. Daí que, na concepção idealista, os objetos materiais são, de fato, representações fugazes de essências ideais (Ibidem, p. 60-61).
A concepção idealista da esfera objetiva (ou mundo material) como reflexo de uma esfera ideal é, segundo Marx, essencialmente produto de contradições sociais objetivas, que aqui não podem ser consideradas, mas também encontra justificativa em uma ilusão cujo fundamento reside, em parte, na natureza do processo do conhecimento, exposto acima, em particular à medida que o desenvolvimento social atinge fases mais avançadas. Em síntese, este fundamento consiste em primeiro lugar no fato de que conhecer é reproduzir o real através do pensamento. Isto significa que o concreto real apresenta-se de imediato como um produto intelectual, cuja matéria prima é a coleção de conceitos ou abstrações simples elaboradas previamente, e que são também produtos intelectuais. Assim, se se isola a etapa mental do processo do conhecimento como um todo, representado esquematicamente acima, é possível conceber o próprio mundo como produto do pensamento, seja do próprio ser humano ou de um ser concebido como superior, que em Hegel é a Idéia ou o Espírito absoluto . Além deste fundamento, a ilusão da autonomia do pensamento na criação do mundo real reforça-se quando surge e se expande a divisão do trabalho entre as atividades materiais e as mentais, ou entre os trabalhos manual e intelectual. Quando isto ocorre, o fato de que a etapa intelectual do processo de conhecimento, ou da prática, é realizada por indivíduos especializados nesta função e totalmente separados das atividades da produção direta, desenvolve-se a pretensão de que a atividade intelectual possui autonomia diante da atividade material, e converte-se em uma aparente justificativa da primazia do espírito sobre a matéria .
A sucessão de modos de produção e as mudanças nas idéias ou na consciência social
Vimos que as idéias refletem a prática, ou a atividade humana, como fenômeno social e não individual, e que esta prática engloba as relações do ser humano com a natureza, por um lado, e uns com os outros na sociedade, por outro. É um fato da observação que as idéias, as concepções, as teorias, alteram-se ao longo do processo histórico, isto é, idéias existentes são abandonadas e novas idéias surgem. Com base no princípio da elaboração do conhecimento a partir da prática, segue-se que a evolução das idéias deve ser concebida como reflexo de mudanças nas relações do ser humano com a natureza e na sociedade . Nisto consiste o processo histórico. Segue-se disto que a história das idéias é destituída de sentido se desligada da história da prática humana . Embora separada nas esferas natural e social, a atividade humana constitui uma totalidade, pois a esfera natural da prática é o processo de produção e este é um processo social, porque condicionado pela divisão do trabalho. Marx postulou que a prática social, concebida duplamente deste modo, dá origem a padrões definidos de organização social, os modos de produção, cuja configuração é determinada pela combinação de dois elementos: um é o grau de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, ou da técnica, em sentido amplo, o outro são as relações sociais de produção, refletidas no regime jurídico da propriedade dos meios de produção. No que diz respeito ao desenvolvimento da técnica, que pressupõe o desenvolvimento do conhecimento da natureza com base na evolução da prática material, Marx postula a existência de níveis ou patamares qualitativamente diferenciados do seu desenvolvimento, de tal modo que se pode determinar épocas históricas sucessivas, caracterizadas por padrões progressivos, qualitativamente diferenciados, da base técnica da produção. Estes patamares, porém, estão vinculados a regimes de propriedade determinados.
O papel do regime da propriedade dos meios de produção é mais complexo e, dadas as suas implicações sociais e o seu caráter essencial na configuração das sociedades modernas, mais explosivo. Segundo Marx, a cada nível de desenvolvimento das forças produtivas corresponde um regime determinado de propriedade dos meios de produção, nesta ordem . É essencial observar que este postulado decorre necessariamente da concepção materialista da relação entre a vida material e a consciência, uma vez que o regime de propriedade é uma categoria jurídica, portanto uma categoria da consciência. Considerando que a fonte do conhecimento e da elaboração de conceitos é a prática material, que condiciona as relações sociais - que são, deve-se lembrar, relações impostas pelo caráter objetivo da produção e da distribuição dos meios de vida -, segue-se que o regime de propriedade, que reflete a relação social objetiva, deriva o seu caráter do caráter da produção, isto é, da configuração técnica desta. Ao relatar o resultado das suas pesquisas iniciais, no prefácio da Contribuição ..., Marx é explícito a este respeito:
“Na produção social da sua vida os seres humanos estabelecem relações determinadas, necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção, que correspondem a níveis determinados de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. (...) O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, político e intelectual em geral” (CEP, p. 135/100, grifos acrescentados).
A produção material da vida é a base de toda a atividade humana prática, com base na qual as forças produtivas se desenvolvem através da solução progressiva dos novos problemas que se apresentam sucessivamente, e é o desenvolvimento das forças produtivas que altera a configuração das relações do ser humano com a natureza e na sociedade .
Há uma diferença necessária entre o conceito de propriedade como apropriação material e como regime jurídico. Toda produção é apropriação de materiais naturais por quem produz. Na medida que o conteúdo técnico da produção se desenvolve, a produção ou apropriação de materiais naturais vale-se de outros materiais naturais previamente extraídos da natureza e apropriados pelo produtor, que são os meios de produção produzidos, como instrumentos, instalações, matérias-primas elaboradas, etc. No início histórico da atividade produtiva humana, quando a divisão do trabalho era limitada e pequenos os grupos humanos, a produção e a apropriação apresentavam um caráter coletivo elementar, não havia distinção entre a apropriação individual e a coletiva, e a terra era o meio de produção fundamental. Ao correspondente período histórico Marx denominou comunismo primitivo. Todavia, à medida que a divisão do trabalho especializou famílias e/ou grupos de famílias em ramos de produção distintos, separaram-se agricultura e pecuária, campo e cidade, produção e circulação, produção e consumo, etc., e os meios de produção produzidos tornaram-se mais relevantes. Surgiu assim uma mediação entre a apropriação individual pela produção e a apropriação coletiva pela distribuição do produzido. A produção especializada individualizou a apropriação dos meios de produção produzidos e da própria terra. Isto ocorreu ao longo de um complexo e longo processo histórico, dando origem ao conceito jurídico da propriedade privada, distinto do conceito de apropriação pelo trabalho e da apropriação coletiva pela distribuição . Iniciou-se com isso a época histórica das sociedades baseadas na propriedade privada dos meios de produção, que se distinguem uma da outra pela forma específica que este regime de propriedade adota.
Deve-se notar que o comunismo primitivo designa a propriedade coletiva no sentido de propriedade comum ou geral, isto é, que engloba todos os membros do grupo social. A introdução da propriedade privada, por outro lado, não designa a generalização da propriedade em caráter privado individual, mas implica a limitação da propriedade, ou a privação da propriedade dos meios de produção para uma parte da sociedade, de modo que esta cinde-se em duas classes fundamentais, a proprietária e não-proprietária. A instituição da privação da propriedade corresponde à instituição da exploração do trabalho alheio , e por consequência dá origem a uma ruptura da sociedade em uma parte dominante e uma parte dominada, que tem consequências decisivas sobre o processo de elaboração das idéias.
Esta cisão da sociedade pressupõe que a produtividade do trabalho atingiu um nível tal que torna possível que o trabalho do produtor direto reproduza não só a própria vida como ainda a da classe proprietária, sem que esta, ou uma parte dela, tenha necessidade de trabalhar diretamente na produção. É esta circunstância que permite que a divisão do trabalho se estenda às duas partes em que se divide a atividade prática: isto é, a prática material e a prática intelectual tornam-se funções de indivíduos diferentes. Mais especificamente, o trabalho intelectual torna-se função de uma parte da classe proprietária. A propriedade privada dos meios de produção, a privação da propriedade de uma parte da sociedade, a exploração do trabalho alheio, etc., são todas expressões de relações sociais objetivas, condicionadas pelo desenvolvimento da prática material social, que se expressam na consciência como idéias ou abstrações, do modo já exposto. Mas o fato de que a elaboração das idéias torna-se uma função exclusiva de uma das partes em que a sociedade está cindida tem consequências decisivas sobre a forma tomada pelos conceitos que expressam as relações sociais vigentes. Assim, “as idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que constitui o poder material dominante da sociedade, constitui ao mesmo tempo o seu poder intelectual dominante”, pois a classe que domina a produção e a distribuiçào dos meios materiais, domina também a produção e a distribuição das idéias.
Em que consistem as idéias dominantes? Seguindo a relação material/intelectual já exposta, elas “nada mais são do que a expressão ideal [isto é, na forma de idéias - CMG] das relações materiais dominantes, ou das relações materiais dominantes concebidas como pensamentos; ou seja, das relações que fazem de uma classe a dominante, ou seja, [d]os pensamentos da dominação” (IA, p. 46-7). Assim, a cisão da sociedade em classes antagônicas incide sobre o momento intelectual do processo do conhecimento, conferindo-lhe um viés ou uma unilateralidade específicos, que refletem o caráter específico do domínio de classe vigente. Em primeiro lugar, as idéias que expressam a dominação são geradas pela existência objetiva da dominação, condicionada esta pelo estágio de desenvolvimento das forças produtivas vigente. Portanto, não é o surgimento prévio de idéias ou intenções de dominação que dá origem à dominação de classes, mas o contrário é que ocorre. Em segundo lugar, são os integrantes de um segmento social específico que exercem a função, condicionado também isto pela divisão do trabalho correspondente ao estágio de desenvolvimento das forças produtivas, de elaborar o sistema de idéias dominante nesta sociedade, e este segmento é um segmento da classe dominante. Nesta medida as idéias que expressam a dominação são convertidas em justificação da dominação, dando origem a interpretações ideológicas próprias de cada época histórica.
Deve-se mencionar duas implicações importantes do processo de formação das idéias que expressam as relações objetivas de dominação como auto-justificação da classe dominante: por um lado, as idéias dominantes de uma época podem ser, e são, concebidas como se pudessem ser desvinculadas do caráter específico do domíno de classe vigente - por historiadores, por exemplo -, de modo que se elabora teorias aparentemente consistentes, que postulam que o caráter das estruturas econômica, social, institucional, etc., de cada época são um produto das idéias dominantes nesta época, e não o contrário. As idéias são concebidas, assim, como a fonte da qual brota a realidade, seja ou não esta fonte situada explicitamente em um nível transcendental, e são responsabilizadas pelo que a realidade apresenta de bom e de mau. Isenta-se assim a realidade e especialmente a classe dominante do momento. Deste princípio se deduz o corolário de que a transformação das estruturas sociais requer uma prévia transformação das idéias, conceitos, teorias vigentes . Por outro lado, a própria classe dominante desenvolve a pretensão de que é um determinado sistema de idéias ou concepções que determina o seu domínio como imposição de uma predestinação transcendental (IA, p. 47). Entende-se facilmente que os pensamentos dominantes, entendidos, como acima, como expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, sejam formulados, ao contrário, como pretensa expressão não do ser humano típico da época, mas de um suposto ser humano em geral, ou da essência humana natural, isto é, inscrita no ser humano pela natureza. Esta operação mental permite representar o domínio da classe do momento em expressão da natureza eterna do ser humano e não dos interesses passageiros e exclusivistas da classe que no momento exerce o domínio.
É precisamente deste tipo a concepção burguesa da natureza humana, na medida que ela atribui ao ser humano, como sua essência natural, o conjunto das idéias que expressam a dominação das relações capitalistas de produção e distribuição e consequentemente da classe capitalista. Assim, a noção da ordem natural fisiocrática - uma das expressões originais da ideologia econômica burguesa em geral - afirma que a ordem mercantil, especificamente capitalista, isto é, as relações sociais próprias do capitalismo, expressam as motivações intrínsecas ou inatas à natureza humana, por isto é uma ordem natural . Disto se segue que todas as demais formas de organização social são artificiais, porque colidem com as motivações naturais inatas do ser humano (MF, p. 134/139). Em Adam Smith este pressuposto aparece, por exemplo, no início da Riqueza das Nações no postulado de que a economia mercantil resulta da propensão à troca, inata no ser humano, isto é, que faz parte da sua natureza, o que implica do mesmo modo que a ordem mercantil capitalista é uma ordem natural (Smith, cap. 2). Todas as idéias que expressam as relações especificamente burguesas, que são ao mesmo tempo as idéias que expressam o domínio da classe capitalista, são tidas como atributos do ser humano em geral. Assim por exemplo a forma burguesa da propriedade privada é conceituada como a forma geral da propriedade; o mesmo se dá com a perseguição do interesse privado como princípio regulador, consequentemente a concorrência e a vitória dos mais aptos; com o Estado como guardião da ordem burguesa, concebida como a forma geral da ordem social, e assim por diante.
Este processo de ideologização da realidade constitui o fundamento do chamado individualismo metodológico, pois este postula precisamente que a explicação da constituição da sociedade atual - que é capitalista - deve ser buscada nas motivações do indivíduo, que no capitalismo são as motivações capitalistas do indivíduo, interpretadas no entando como motivações do ser humano em geral e inatas. Aplicado à economia, este procedimento implica que as relações sociais de produção e distribuição do capitalismo, que constituem a estrutura básica da sociedade atual, têm sua origem em uma essência humana previamente existente, portanto natural, cuja exteriorização constitui a sociedade capitalista. O individualismo metodológico expressa, portanto, no terreno do método, o processo de inversão da direção da causalidade, que vai da prática material para as idéias, e o seu procedimento constitui uma tentativa de justificação teórica da racionalidade da ordem burguesa. Esta racionalidade possui o agravante de ser concebida como eterna: uma vez que são as inclinações humanas naturais - isto é, impressas no ser humano pela ordem da natureza e não pela ordem social -, segue-se que a ordem burguesa é a única ordem social compatível com a natureza humana. Por este motivo é que Marx caracteriza o enfoque da economia política clássica como um enfoque a histórico, pois é incapaz de situar o capitalismo historicamente, isto é, como forma de organização social condicionada historicamente e portanto destinada a ser superada, como todas as demais.
Na concepção materialista elaborada por Marx, ao contrário, “a essência humana não é um abstrato residente no indivíduo isolado. Na sua realidade ela é[, ao contrário,] o conjunto das relações sociais” (IA, p. 6, inserção acrescentada). A sociedade, do mesmo modo, não é um conjunto de indivíduos - que constitui apenas a população -, mas uma rede de relações sociais. Neste sentido é que se pode dizer que, na teoria de Marx, o indivíduo é determinado pela sociedade, e não o contrário. Mas isto não implica conceber o ser humano como um ser passivo, mas é compatível com a concepção de Marx, exposta acima, segundo a qual o ser humano é o sujeito da sua história, através da sua atividade prática. Como se explica o aparente paradoxo? O que é decisivo é que o ser humano elabora a sua própria história, mas não individualmente nem planejadamente, mas socialmente e como resultado não previsto do conjunto das relações que estabelece com a natureza e entre si, das quais só gradualmente toma consciência. Deste modo o indivíduo, concebido isoladamente, e até mesmo cada geração, defrontam-se com condições objetivas que não escolheram e dentro de cujo contexto devem viver e desenvolver a sua ação, que é a origem da mudança a partir da base que encontram quando nascem. Portanto, o processo através do qual o ser humano, como ser social, produz a sua história, é por sua vez condicionado e limitado historicamente.
Uma implicação relevante do vínculo entre o ser e a consciência, estabelecido por Marx, pode ser apresentada do seguinte modo. Da exposição de Marx deduz-se que, por um lado as idéias dominantes em sociedades de classes expressam as relações sociais vigentes, que são relações de dominação de uma classe sobre outra. Mas, por outro lado, o domínio de classe vigente reflete não uma imposição arbitrária, por uma classe, do seu domínio sobre a outra, mas é resultado de uma organização necessária da produção social. Necessária no sentido de ser imposta pela trajetória objetiva de desenvolvimento das forças produtivas, significando que é a trajetória objetivamente seguida por este desenvolvimento que conduz em primeiro lugar à cisão da sociedade em classes com base na propriedade privada, e em segundo lugar a formas sucessivas e qualitativamente distintas, de sociedades de classes, baseadas em formas distintas e progressivas da propriedade privada. Isto significa que a divisão em classes, e consequentemente o domínio de uma classe sobre a outra, são resultados naturais e, neste sentido, inevitáveis, do desenvolvimento social em cada momento. Se é assim, se o domínio de classe reflete uma organização da produção social resultante do desenvolvimento objetivo das forças produtivas, segue-se que não há, em princípio, justificativa para idéias fundamentadas, divergentes das dominantes, ou seja, idéias contrárias às relações de dominação vigentes. Ou melhor, não há justificativa para a emergência de idéias divergentes como representação de relações reais, pois não existem, em princípio, relações reais divergentes das relações vigentes. Todavia, caso relações reais divergentes surjam, idéias divergentes das dominantes surgirão, também necessariamente, como seu reflexo no pensamento.
E o fato é que, segundo Marx, idéias deste tipo surgem, também por força da necessidade imposta pelo desenvolvimento objetivo, pois o desenvolvimento das forças produtivas gera uma nova configuração da divisão do trabalho, novas funções na estrutura da produção e da distribuição e extinção de funções antigas, portanto uma correspondente nova forma de relação de apropriação dos meios de produção e dos produtos pelos produtores, etc. Todas estas novas realidades expressam-se na forma de novas idéias e concepções, que Marx denominou de revolucionárias, porque propõem uma reformulação ou revolução nas relações sociais, que estão assentadas, deve-se recordar, em formas definidas de propriedade. O que as novas idéias propõem, portanto, é uma transformação qualitativa do regime de propriedade dos meios de produção. Mas não propõem tal reformulação com base em princípios abstratos de justiça ou igualdade, mas refletindo as transformações objetivas, de natureza técnica, em curso na estrutura das forças produtivas, apontadas acima, que fornecem o fundamento a uma demanda objetiva pela substituição das relações sociais vigentes por relações de novo tipo. Estas idéias não se propõem por elas mesmas, mas por intermédio dos sujeitos das novas relações de propriedade, que constituem uma nova classe em processo de gestação a partir das transformações em curso na esfera das forças produtivas.
Assim sendo, a nova classe resulta de um processo de transformação que abala o domínio da classe dominante existente, porque surge de um abalo nas relações de produção em que tal domínio se baseia. É isto que Marx designa como surgimento histórico de uma época de revolução social, resultante da contradição que se estabelece entre “as forças produtivas materiais da sociedade e as relações de produção vigentes, ou o que é apenas uma expressão jurídica disto, [entre as forças produtivas e] as relações de propriedade, no interior das quais até agora se moveram” (CEP, p. 136/100-1, inserção acrescentada). É o raciocínio lógico exposto acima que justifica a afirmação de Marx, nesta mesma passagem, de que “a humanidade só se propõe tarefas que pode resolver, pois, após melhor exame se concluirá que a própria tarefa só se coloca onde as condições materiais da sua solução já existem ou estão em processo de gestação” (Ibidem, p. 136/101) .
Como se pode ver, este resultado decorre do desenvolvimento simultâneo das práticas natural (desenvolvimento técnico) e social (desenvolvimento das relações sociais na produção). A esfera das idéias, em todas as suas manifestações (científica, técnica, ideológica, política, artística, etc.), reflete estes desenvolvimentos. O fato de este reflexo não ser linear nem simples, mas extremamente complexo, não anula o nexo lógico que vai da prática às idéias, desde que a análise pretenda fornecer uma explicação consistente da origem das idéias. Caso se negue o nexo lógico proposto por Marx, deve-se necessariamente postular que as idéias têem uma origem externa à prática humana objetiva, o que constituirá uma forma de idealismo. O conflito ao qual Marx se refere nos momentos que precedem uma mudança qualitativa da estrutura social resultam de um conflito, na esfera da consciência social originado de um salto qualitativo no nível do desenvolvimento técnico (prática natural).
Estes enunciados de Marx deram origem a formas de interpretação do significado real das suas idéias que constituíram a base de controvérsias significativas no campo marxista. Mencione-se apenas o problema expresso no determinismo mecanicista que se passou a atribuir à teoria de Marx, por um lado na interpretação da chamada relação base-superestrutura, e por outro na suposta inevitabilidade do socialismo, abordada por exemplo em artigo relativamente recente (Paula, 1994). À parte a qualidade inegável da sua abordagem, parece-me que algumas das suas conclusões, para serem válidas, teriam que ser precedidas por uma especificação mais rigorosa dos conceitos da teoria de Marx com os quais trabalha e dos eventos com os quais os ilustra . Assim, Paula avalia como ‘determinismo vertiginoso’ a sequência lógica que conduz à revolução social, que se procurou sintetizar nos parágrafos anteriores, postulando a necessidade de reservar um lugar para outros fatores, como por exemplo a indeterminação e a subjetividade do indivíduo. Tendo-se em mente o caráter da elaboração teórica representada pelo concreto pensado, já exposto, construído com base em abstrações, os elementos apontados por Paula não conflitam necessariamente com a estrutura da teoria de Marx. Assim, o método da abstração implica eliminar muito do que se pode denominar indeterminado, sem constituir um erro técnico, e a subjetividade só seria conflitante com o enfoque de Marx caso se atribuísse a ela a capacidade de gerar conceitos desvinculados da atividade prática, natural e social, do ser humano. Mas falta especificação mais precisa para validar qualquer conclusão. Estes são problema abertos ao debate, para o qual espero que o presente artigo forneça alguns elementos relevantes.
Conclusão
Procurou-se neste artigo expor a estrutura lógica básica das concepções de Marx sobre a origem das idéias - ou da esfera do pensamento - e sobre o processo da sua mudança ao longo da evolução histórica. Esta exposição colocou em evidência, ao mesmo tempo, as implicações da concepção filosófica materialista de Marx sobre o processo de geração das idéias de modo geral, sem ter sido necessário introduzir definições doutrinárias inócuas.
A exposição procurou destacar o nexo causal existente entre as atividades práticas do ser humano - nas suas relações combinadas com a natureza e uns com os outros em sociedade - e a sua atividade mental, através da qual reproduz o mundo material, sobre o qual age, como uma totalidade do pensamento. Este princípio, aplicado à economia, permite tornar mais preciso o significado dos enunciados de Marx no seu texto O método da economia política. Através do detalhamento das implicações das relações abstrato/concreto, expostas por Marx, procurou-se definir mais rigorosamente a concepção de Marx sobre o processo de formulação das teorias econômicas e, em seguida, sobre o processo da sua evolução histórica, paralelamente à evolução das formas de organização ou modos de produção.
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Fonte: http://www.thinkmedia.com.br/ufpr/#2000 texto 11/2000
segunda-feira, 22 de março de 2010
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